Vitor Hugo Soares
Nada como os grandes desastres que se abatem sobre populações inteiras e a visão dos dramas que se seguem, entrando pelas casas do país, em imagens instantâneas de coberturas jornalísticas, como a conduzida por Fátima Bernardes na quinta-feira, direto do Morro do Bumba, em Niterói, para desnudar o que a fauna humana tem de melhor e pior nas duas pontas opostas de seu espectro.
No Rio de Janeiro desta semana – assim como nas recentes tragédias causadas pelos terremotos no Haiti e no Chile – as situações se assemelham em grandiosidade e em pequenez: heróis anônimos, em geral gente desconhecida da própria comunidade surgem de repente do lamaçal, de dentro das águas ou dos círculos de poeira e escombros.
Pessoas de todas as idades. Uma delas, a menina de oito anos que Fátima entrevista no final da sua pungente e humana reportagem no JN. Laura Beatriz narra sua experiência pessoal dolorosa e comovente no meio do caos, da dor incontida e dos gemidos em volta, enquanto tudo desmorona. No final, a mensagem surpreendente de que é preciso não jogar fora a esperança que ainda resta: “ainda tenho muito a viver”, diz a menina.
Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. Penso em seguida nas palavras do poeta enquanto observo as imagens dos voluntários generosos vindos de lugares próximos da favela fluminense, ou de países distantes, armados de infinita coragem e vontade de ajudar. Cidadãos despreendidos, técnicos capazes.
E o contraste com o bate-cabeça desordenado de governantes e administradores insensíveis, sem planos e sem idéias do que fazer efetivamente. A não ser esperar a chuva passar, para ver “como a gente vai resolver os problemas”. Enquanto isso, repisam surrado discurso de outras tragédias. Acusam a “ocupação desordenada dos terrenos urbanos e dos lixões abandonados”, jogam pedras em governos passados , “que em mais de 50 anos nada fizeram”, como gosta de repetir o governador Sérgio Cabral.
Em volta, por todos os lados e de todos os partidos, políticos e candidatos que não enxergam um palmo além do próprio umbigo ou da sobrevivência por mais um mandato nas eleições que se aproximam. Na fotografia de O Globo, a ex-ministra Dilma Rousseff, candidata do peito do presidente Lula à sua sucessão, confraterniza-se alegremente com o ex-governador Garotinho, até recentemente apontado como responsável por metade das desgraças do Rio de Janeiro das últimas décadas.
Agora a culpa é jogada sobre mortos. Um deles, o ex- governador Leonel Brizola, que no túmulo em que descansa no Rio Grande do Sul, nem pode responder. Na hora de acusar, não falta quem lembre até de outro gaúcho; Getúlio Vargas.
Simbolicamente, até a histórica e sempre afetuosa ligação Rio-Bahia anda ameaçada pelos efeitos da catástrofe. No meio das chuvas devastadoras no Rio – pouco antes do desmoronamento no Morro do Bumba, que previsões indicam pode ter soterrado até 200 pessoas – saiu o relatório da auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU). O levantamento revela que, entre 2004 e 2009, o estado do Rio recebeu menos de 1% do total de recursos destinados à prevenção de catástrofes em todo o país, enquanto a Bahia – terra do ex-ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima (PMDB), virtual candidato de seu partido ao governo no estado – teria abocanhado mais de 60% dos recursos.
O conselho nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que parece despertar da letargia dos últimos anos, quer que o Ministério Público investigue tudo. O presidente da instituição, Ophir Cavalcante, reconhece que a OAB não tem como exigir do poder público certos dados, o que o MP pode fazer, até para afastar esse tipo de acusação ou de coincidência.
“Queremos apenas a explicação. O governo tem que se explicar. É o mínimo que pode ser feito nesse momento”, assinala o presidente da OAB. Na quinta-feira, o presidente Lula saiu em defesa de Geddel, ex-auxiliar destacado de sua administração e aliado político e de palanque em 2010, apesar dos desentendimentos do ex-ministro com o governador petista baiano, de quem quer o lugar no Palácio de Ondina. Novos temporais à vista, desta vez políticos e administrativos, já se vê.
Corte para Nelson Rodrigues, no livro de memórias “A Menina sem Estrela”, em que ele recorda a tragédia dos desabamentos nos anos 60, quando morreu seu irmão Paulo Rodrigues, a mulher dele, dois filhos e a sogra. Nelson escreve:
“Sou outro depois das chuvas. E me admira que eu tenha mudado e os outros não. As pessoas continuam indo à praia, meninas tomam grapete de biquíni. Uma catástrofe eufórica como a de Laranjeiras realmente não influiu na cor de uma gravata… Agora mesmo tenho diante de mim um recorte de jornal. É a croniqueta do poeta Drumond sobre o desabamento. Já vasculhei o papel impresso, já o apalpei, já o farejei, já o virei de perna pro ar…”
Mais Nelson Rodrigues para terminar: “E o papel não diz nada… Preliminarmente, uma catástrofe para seus largos movimentos, exige espaço, exige extensão. E a crônica miúda é um gênero próprio para furtos de galinha, duzentas mortes pedem a abundância de Jorge de Lima da “Invenção de Orfeu”.
E ponto final, por enquanto.
Vitor Hugo Soares é jornalista . E-mail: vitor_soares1@terra.com.br
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