O JECA TATU DE MONTEIRO LOBATO
(Rui Barbosa)
Conheceis, porventura, o Jeca Tatu, dos Urupês, de Monteiro Lobato, o admirável
escritor paulista? Tivestes, algum dia, ocasião de ver surgir, debaixo desse
pincel de uma arte rara, na sua rudeza, aquele tipo de uma raça, que,
"entre as formadoras da nossa nacionalidade", se perpetua "a
vegetar, de cócoras, incapaz de evolução e impenetrável ao progresso"?
Solta Pedro I o grito do Ipiranga. E o caboclo, em cócoras. Vem, com o 13
de maio, a libertação dos escravos; e o caboclo, de cócoras. Derriba o 15 de
novembro um trono, erguendo urna república; e o caboclo, acocorado. No cenário
da revolta, entre Floriano, Custódio e Gumercindo, se joga a sorte do país,
esmagado quatro anos por Incitatus; e o caboclo ainda com os joelhos à bôca. A
cada um dêsses baques, a cada um desses estrondos, soergue o torso, espia, coça
a cabeça, "magina", mas volve a modorra e não dá pelo resto.
De pé, não é gente. A não ser assentado sobre os calcanhares, não
destempera a língua, "não há de dizer cousa com cousa". A sua biboca
de sapé faz rir aos bichos de toca. Por cama "uma esteira espipada".
Roupa, a do corpo. Mantimentos, os que junta aos cantos da sórdida arribana. O
luxo do toucinho pendente de um gancho à cumeeira. À parede, a pica-pau, o
polvarinho de chifre, o rabo de tatu e, em pára-raio, as palmas bentas. Se a
cabana racha, está de "janelinhas abertas para o resto da vida".
Quando o cólmo do teto, aluído pelo tempo, escorre para dentro a chuva, não se
veda o rombo; basta aparar-lhe a água num gamelo. Desaprumando-se os barrotes
da casa, um santo de mascate, grudado à parede, lhe vale de contraforte,
embora, quando ronca a trovoada, não deixe o dono de se julgar mais em seguro
no ôco de tuna árvore vizinha.
O mato vem beirar com o terreirinho da palhoça. Nem flores, nem frutas,
nem legumes. Da terra, só a mandioca, o milho e a cana. Porque não exige
cultura, nem colheita. A mandioca, "sem vergonha", não teme formiga.
A cana dá a rapadura, dá a garapa, e açucara, de um rolete espremido a pulso, a
cuia do café.
Para Jeca Tatu "o ato mais importante da sua vida é: votar no governo".
"Vota. Não sabe em quem. Mas vota." "Jeca por dentro rivaliza
com Jeca por fora. O mobiliário cerebral vale o do casebre." Não tem o
sentimento da pátria, nem, sequer, a noção do país. De "guerra, defesa
nacional, ou governo", tudo quanto sabe, se reduz ao pavor do recrutamento.
Mas, para todas as doenças, dispõe de mezinhas prodigiosas como as idéias dos
nossos estadistas. Não há bronquite, que resista ao cuspir do doente na boca de
um peixe, solto, em seguida, água abaixo. Para brotoeja, cozimento de beiço de
pote. Dor de peito? "O porrete é jasmim de cachorro" Parto difícil?
Engula a cachopa três caroços de feijão mouro, e "vista no avêsso a camisa
do marido".
Um fatalismo cego o acorrenta à inércia. Nem um laivo de imaginação, ou
o mais longínquo rudimento d´arte, na sua imbecilidade. Mazorra e soturna,
apenas rouqueja lúgubres toadas. "Triste como o curiango, nem sequer
assobia". No meio da natureza brasileira, das suas catadupas de vida, sons
e colorido, "é o sombrio urupê de pau podre, a modorrar silencioso no recesso
das grotas. Não fala, não canta, não ri, não ama, não vive."
( A questão Social e a política no Brasil. Conferência pronunciada em
20 de marco de 1919, no Teatro Lírico, do Rio de Janeiro. A referência à criação
de Monteiro Lobato tornou imediatamente conhecida em todo o país a figura de Jeca
Tatu.)
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