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quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O JECA TATU


O JECA TATU DE MONTEIRO LOBATO
(Rui Barbosa)



Conheceis, porventura, o Jeca Tatu, dos Urupês, de Monteiro Lobato, o admirável escritor paulista? Tivestes, algum dia, ocasião de ver surgir, debaixo desse pincel de uma arte rara, na sua rudeza, aquele tipo de uma raça, que, "entre as formadoras da nossa nacionalidade", se perpetua "a vegetar, de cócoras, incapaz de evolução e impenetrável ao progresso"?
Solta Pedro I o grito do Ipiranga. E o caboclo, em cócoras. Vem, com o 13 de maio, a libertação dos escravos; e o caboclo, de cócoras. Derriba o 15 de novembro um trono, erguendo urna república; e o caboclo, acocorado. No cenário da revolta, entre Floriano, Custódio e Gumercindo, se joga a sorte do país, esmagado quatro anos por Incitatus; e o caboclo ainda com os joelhos à bôca. A cada um dêsses baques, a cada um desses estrondos, soergue o torso, espia, coça a cabeça, "magina", mas volve a modorra e não dá pelo resto.
De pé, não é gente. A não ser assentado sobre os calcanhares, não destempera a língua, "não há de dizer cousa com cousa". A sua biboca de sapé faz rir aos bichos de toca. Por cama "uma esteira espipada". Roupa, a do corpo. Mantimentos, os que junta aos cantos da sórdida arribana. O luxo do toucinho pendente de um gancho à cumeeira. À parede, a pica-pau, o polvarinho de chifre, o rabo de tatu e, em pára-raio, as palmas bentas. Se a cabana racha, está de "janelinhas abertas para o resto da vida". Quando o cólmo do teto, aluído pelo tempo, escorre para dentro a chuva, não se veda o rombo; basta aparar-lhe a água num gamelo. Desaprumando-se os barrotes da casa, um santo de mascate, grudado à parede, lhe vale de contraforte, embora, quando ronca a trovoada, não deixe o dono de se julgar mais em seguro no ôco de tuna árvore vizinha.
O mato vem beirar com o terreirinho da palhoça. Nem flores, nem frutas, nem legumes. Da terra, só a mandioca, o milho e a cana. Porque não exige cultura, nem colheita. A mandioca, "sem vergonha", não teme formiga. A cana dá a rapadura, dá a garapa, e açucara, de um rolete espremido a pulso, a cuia do café.
Para Jeca Tatu "o ato mais importante da sua vida é: votar no governo". "Vota. Não sabe em quem. Mas vota." "Jeca por dentro rivaliza com Jeca por fora. O mobiliário cerebral vale o do casebre." Não tem o sentimento da pátria, nem, sequer, a noção do país. De "guerra, defesa nacional, ou governo", tudo quanto sabe, se reduz ao pavor do recrutamento. Mas, para todas as doenças, dispõe de mezinhas prodigiosas como as idéias dos nossos estadistas. Não há bronquite, que resista ao cuspir do doente na boca de um peixe, solto, em seguida, água abaixo. Para brotoeja, cozimento de beiço de pote. Dor de peito? "O porrete é jasmim de cachorro" Parto difícil? Engula a cachopa três caroços de feijão mouro, e "vista no avêsso a camisa do marido".
Um fatalismo cego o acorrenta à inércia. Nem um laivo de imaginação, ou o mais longínquo rudimento d´arte, na sua imbecilidade. Mazorra e soturna, apenas rouqueja lúgubres toadas. "Triste como o curiango, nem sequer assobia". No meio da natureza brasileira, das suas catadupas de vida, sons e colorido, "é o sombrio urupê de pau podre, a modorrar silencioso no recesso das grotas. Não fala, não canta, não ri, não ama, não vive."

( A questão Social e a política no Brasil. Conferência pronunciada em 20 de marco de 1919, no Teatro Lírico, do Rio de Janeiro. A referência à criação de Monteiro Lobato tornou imediatamente conhecida em todo o país a figura de Jeca Tatu.) 

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